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Notas abertas dos dias de Montréal

O problema tem sido acordar, porque é quando consigo emprestar palavras para o que espero do meu dia. Ir ao supermercado, voltar do supermercado, misturar alfaces e um salame vegetal, encontrar um pão que caiba, e então chamar de almoço. Retirar o alarme de incêndio, antes e depois (o almoço é o incêndio, aparentemente). Fazer carinhos em Charlotte na hora certa e evitar fazê-los na hora errada.

Penso então que é curiosa essa vida em que os carinhos são planejados. Mas de todo modo, curiosa também é a vida em que planejamos os planos.

De resto, a rotina é um balão no qual soprei tanto gás hélio (daquele que só sai de pulmões) que agora voa, e eu fico pulando aqui embaixo. O que fazer de verdade da vida? Em três meses, há a faculdade, e uma faculdade costuma servir para dar sentido. Mas e antes, o que serve ao sentido?

(Charlotte mia do lado de fora do escritório. Não devo abrir a porta para que não pense que foi ela quem a abriu, que foi a força dos miados, que é maior do que todas as portas, etc, etc).

Ultimamente, tenho tentado me convencer de que faz sentido a bricolagem, e todas essas tintas e lixas e coisas ásperas que tem de ser lixadas. Incrível a quantidade de asperezas no mundo (seria esse o sentido: torná-lo liso? há algo de fascista em tudo isso). Não vejo porque não fazer. O problema da bricolagem é que ela é tudo o que há no mundo que está fora de mim, e que desconheço, pois que sempre martelei apenas para dentro, e pintei para dentro, e apertei parafusos para dentro. Para fora, sou duro. E é difícil dar sentido quando se está duro.

Com a língua é o mesmo.

Acho que na hora de brincar de sentido, sempre recorro a escrita. Ainda que seja apenas uma duplicação da minha própria confusão, pelo menos através dela consigo enxergar alguma coisa. Como se escrevesse janelas, e lesse minhas cortinas abertas.

Ler um livro no metrô, também faz sentido. Ou pegar a bicicleta no depósito da varanda, apoiá-la no joelho e então andar ao lado dos carros, com menos rodas e mais vento no rosto, e os dentes de leão que voam e nos mordem por dentro, suaves, antes de virarem um espirro. Tudo o que parece heroico faz sentido. Talvez seja isso o que devo guardar por hoje.

Amanhã talvez vá ao jardim comunitário. Depois, o curso de francês. Tudo bastante aleatório, e um balão que desce aos poucos do universo, murcho, de novo, querendo fazer cara de rotina.

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