A história do pequeno relógio que se destrói com o tempo

Ao caminhar pela casa todas as coisas tremem. Talvez devessem mesmo tremer, por medo, por frio, por covardia, por vingança, por terremoto, por dinamite, todas as coisas do mundo são motivo para que as coisas do mundo tremam afinal. Lote me olha tentando fazer com que seu olhar tenha medo, mas sabendo que nada disso deveria fazer sentido. Penso que ia falar sobre o dedo, o médico, talvez devesse ir afinal, um dedo tem suas utilidades afinal, mas não falo.

— O que foi isso?, pergunta Lote assustando os olhos.

Era o relógio caindo pelo chão, caindo pelo chão como se tivesse se jogado. Pode o tempo se quebrar?, pensei, mas depois pensei que era não fazia sentido, que o tempo já começa quebrado, já se espatifou desde o começo, zilhões de segundos espalhados por todo o cosmos e a tarefa eterna de juntá-los, de colá-los um a um.

— Ainda funciona?, pergunta Lote sem interesse.

Penso se deveria responder, e depois penso que seria mais importante falar do que ia falar antes, mas o que era? Pães, pelos, cheiros de esgoto saindo do banheiro, tantas coisas definhando pela casa e pela vida, lá fora pode ser que chova, mas nada disso devia se tornar assunto, não agora, não agora, que cada tragédia espere a sua vez para acontecer, como em uma boa e civilizada fila, tudo muito bem organizado.

— A parte redonda se soltou do resto. Melhor assim, lhe respondo, deixando a Lote o papel de acreditar em mim ou não.

Lote acreditou, ficava melhor assim, um relógio sem corpo, que flutuasse pela casa como deveria flutuar tudo o que passa com o tempo. No fundo, definhava também. Dois meses depois, esbarrei-lhe com a sacola de compras e foi abaixo novamente. Pedaços de tempo espalharam-se por todas as partes. Abaixei-me e então, pus-me a catar como se fazia antes, nos tempos do começo dos tempos. Talvez fosse um novo começo, uma nova era, um novo universo com outra lógica, talvez os gansos amarelos estejam no poder, talvez o céu seja de comer com cebola, e então olhei para me certificar, quase atônito com a curiosidade que acabava de inventar, e vi que os segundos passavam tranquilamente como antes, porém sem fazer girarem juntos as horas ou os minutos. Rodavam em círculos inúteis de quem passeia sem ter para onde ir.

— Como um aquário?, perguntou Lote, buscando uma metáfora.

Tive vontade de lhe responder “como qualquer coisa”, mas nada disse, pois não seria uma metáfora e porque não tinha vontade de me sentir vazio naquele momento, de modo que preferi um copo d’água.

— Também como um aquário?, insistiu Lote, e para ela também já não era metáfora.

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Onde está a natureza

Tenho andado me perguntando, afinal, “onde estaria a natureza”? Não está ao meu redor, penso em seguida, observando o meu redor, repleto de paredes preenchidas por retratos, retrados preenchidos por imagens, e não posso atravessar nem uma nem outra. Talvez também haja janelas, mas é difícil reconhecê-las em meio à confusão. Do chão, sinto apenas algo que tenta arrastar meu pé para longe.

– Você vem?, perguntam de longe sem que eu saiba quem é.

Tento pensar em uma árvore. Deve ter um tronco, deve ter um começo e um fim, as raízes de um lado se enterrando no barro com todos os seus medos e seus choros escondidos, os galhos do outro se balançando para brincar de liberdade, e coloco meu ouvido por perto.

– Você não vem?, ainda perguntam e acho que vem do vizinho.

Talvez seja apenas cansaço, mas pouco tem me interessado mais do que as vozes das árvores, mesmo que nunca as tenha ouvido.

– Você não vem, agora afirmam, com um suspiro melancólico, como uma brisa, como um pássaro que assobia, porém sem voz, se transformando em mero sopro, em mero vento. Forma sem conteúdo.

E eu continuo aqui, a orelha grudada à árvore de minha imaginação, esperando ouvir uma voz que ainda, que já não vem. Pensando que talvez não esteja ouvindo com a orelha certa. Que talvez eu nem mesmo a tenha.

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Pessoas sem história e pessoas que tem história

As mãos cheias de luvas, tento respirar para dentro e não consigo. Céus, quanto ar em todo este pó, penso para dentro, assim como respiro. Penso que seria estranho se alguém me visse assim, com toda essa máscara, o que pensaria? Tento me pensar de fora. A mesa vai se descascando, a tinta vai escorrendo, uma poça de laranja vai nascendo sobre o chão de asfalto, e penso que logo será uma nova mesa, um recomeço afinal. “Talvez seja choro de mesa”, penso olhando para toda aquela poça. “Eu também choraria se pudesse recomeçar assim”, penso então, pensando em um mundo em que também pudesse trocar de tinta, e como isso seria bom. Foi quando apareceu o rapaz.

“Ela vai ficar sem história”, me diz o rapaz.
“Quem vai ficar sem história?”
“Ela, a mesa. Muda a cor, muda a alma, e logo já não se lembram de quem se é. Como o céu”.

Olho para o céu e lembro de Vique, que deve me esperar. Olho para o rapaz. Que rosto seria esse rosto?

“Como, como o céu?”

O rapaz não se parece com nada nem com ninguém. Não devo conhecê-lo, concluo após um exame profundo da ponta de seu nariz e de suas olheiras mal nutridas.

“Como o céu, ora. Todos os dias lavado pelo sol, quando não pela chuva, nunca consegue ser o mesmo. Porque acha que sempre nos espantamos a cada sol que nasce e a cada outro que se põe? Nos esquecemos. Não é a toa que ninguém se mete a fazer uma história do céu”.

Vique sim era capaz se parecer com muitas coisas. Vique era alguém que se encontrava com cavalos verdes mancos e com arbustos de amoras aladas nas fábulas que vem antes do sono. Vique poderia ser preta e branca, como o cinema. Mas e esse rapaz, o que quer afinal?

“O que você quer, afinal?”, lhe pergunto com uma aspereza desconhecida.
“Preciso de ajuda”.
“Que tipo de ajuda?”
“Está vendo este bilhete? Ele precisa chegar ao número 1404”.
“E se não chegar?”
“Se não chegar estou acabado”.
“E porque você mesmo não o leva”.
“Não posso. Se for visto, também estou acabado. E tem que ser agora”

Não preciso dizer que a história não fazia sentido. Por outro lado, o que me custaria? Que mal poderia fazer? Claro que eu teria de deixar a mesa para trás, a poça laranja se aumentando. Logo seria outra mesa, e tudo seria novo então. Lembro de Vique que deve estar me esperando, seus olhos batem nos relógios da casa e voltam, e batem e voltam novamente, doloridos como um jogo de tênis. Sim, eu poderia ir, mas perderia tempo. Seria isso o que ele quer? Roubar o meu tempo? Mas com que intenções? Se ao menos eu o conhecesse.

“Quem é você afinal?”, lhe pergunto com uma decisão desconhecida.
“Dê. Meu nome é Dê”.”E como posso confiar em você, Dê?”
“Confiar porque? Basta entregar o bilhete ao 1404”.
“Podem fazer algo comigo ao chegar no 1404”.
“Podem fazer algo contigo também ao voltar, ou se não for. Seria triste um mundo em que nada lhe fizessem”.
“Você é daqui? Trabalha?”
“E se eu não fosse? Você decidiria entregar ou não o bilhete pelo fato de eu ser ou não um estrangeiro? Ou por ser desempregado”
“Não é isso, é apenas que preciso de algo, de uma história. Não se pode confiar em alguém sem história”.
“Então você não confia no céu”.
“Como?”
“Não confia no céu. O céu não tem história. Se dependesse de uma chuva tomar água, preferiria cavar a chuva no chão. De todo modo, você também não tem história, e ainda assim parece confiar em si próprio”.
“Como não tenho história?”
“Deve dizer a si mesmo que tem uma namorada, que tem uma mesa que era laranja mas que logo será azul, ou marrom com bolinhas, que portanto é alguém que trabalha com as próprias mãos, o que lhe coloca em oposição as pessoas que não tem as próprias mãos, que as perderam no jogo, ou para o governo, ou uma grande empresa importadora de mãos. E então sente que pode se explicar assim para o mundo. Mas não pode”.
“E como eu poderia me explicar”
“Não pode. É como querer ser um mapa. O marrom é a terra e o azul é a água, e a parte tracejada é uma fronteira em disputa que, apesar disso, jamais sairá de lugar, pois se trata apenas de um mapa. Não há guerras em um mapa. Não se toma banho de mar no azul do mar de um mapa”.
“Ainda assim é alguma coisa. Não posso falar de todo o universo a cada vez que quero saber onde estou, e afinal, temos apenas uma boca e alguns minutos de vida por dia, e todas as desconfianças do mundo. Qualquer coisa pode servir”.
“Qualquer coisa pode servir para quê?”
“Para confiarmos”.

Dê olha para o céu que não tem história. E ele, o que teria? Penso novamente em Vique, em todos os relógios do mundo que já não me pertencem. Se eu partisse, Dê jamais me veria novamente, daria no mesmo, mas ainda assim sinto uma certa culpa e sinto que talvez, se eu fosse, depois eu poderia dormir, e amanhã acordaria, e diria a Vique tudo o que fiz, enquanto faço uma panqueca de manhã, e moscas sobrevoam as plantas da janela, e as coisas serão diferentes do que eram. E é uma pena, uma pena mesmo, mas quando decido que sim, que eu poderia ir, entregar o tal bilhete de alguém sem história até o 1404, percebo que já estou em casa, que a televisão está ligada em algum telejornal que fala de cinco mortos no massacre de ontem, e Dê já não está mais na minha frente, mas na frente de qualquer outra coisa no mundo, ou talvez já não exista mais, ou nunca tenha existido. Agora na tevê há um grande mapa avermelhado, e que combina bem com o marrom novo da nova mesa da sala, que já nem parece mais ter todos os vinte ou trinta anos de idade que tinha há apenas algumas horas atrás.

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Para que serve?

Hoje chove lá fora, e eu aqui dentro, pensando no molhado. Aproveitando para fazer horas que sirvam para pensar em mim mesmo. “Para que sirvo, afinal?”, me pergunto, para em seguida me responder “para nada. Mas provavelmente essa não é a melhor pergunta”.

Escrevo um pequeno manifesto para mim mesmo, que é a maneira adulta e politizada de se perguntar o que você quer ser quando crescer, apenas que com a voz mais grossa e mais para dentro e talvez com mais medo também.

Resolvo que padeço de preguiça. Lá fora a água corre atrás de um bueiro. Atrás da água, corre um cachorro, com a língua para fora como se tivesse sede. Talvez seja um pouco isso a vida, uma grande enchente que não sabe o caminho da garganta. Situação tão absurda que esquecemos até que estamos abandonados na rua, encharcados, sem casa nem toalha nem sol de secar.

Com tantas palavras no mundo, acho que sirvo apenas para as que quero escrever. E torcer para que sirva de algo para quem fica lá fora. No fundo, devemos ser todos assim, quero acreditar. Olho outra vez para o lado, e há uma multidão encharcada, do outro lado da rua, a língua para fora, como se estivessem com sede. Queria gritar, queria jogar-lhes guarda-chuvas ou copos de água. E ainda assim, ao invés disso, resolvo escrever, e torcer para que sirva.

Senão, talvez da próxima vez em que eu escreva, as palavras tenham a ver com o resto do mundo. Questão de torcer. Ou talvez de tamanho. Ou ainda de um bom manual de instruções. 

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O metrô e o belo e o feio de Amélie Nothomb

Hoje terminei meu primeiro livro de metrô. É um livro de metrô porque foi lido entre esperas subterrâneas entre estações, enquanto meu corpo desaparecia do universo para ressurgir em outro ponto da cidade. A melhor forma de desaparecer é dentro de livros, disso não há dúvidas. Nesse sentido, combinar o metrô e a literatura geram um desaparecimento duplo, e faz com que possamos estar no subterrâneo das coisas em todos os seus sentidos, o que é fantástico.

Dentro de um carro, não se pode desaparecer. Pelo contrário, cercado por todos os cantos por todo um dicionário de psicopatias, e por cima por radares e outros pássaros eletrônicos, estar em um carro é o exato oposto do desaparecimento. É um aparecer extremo e exaustivo de si mesmo.

De todo modo, o livro era o Péplum, da Amélie Nothomb. Sobre um arqueólogo do futuro que teria sido o responsável pela erupção sobre Pompéia, e que sequestra uma jovem escritora belga do século XX que teria descoberto seus planos, e mais uma série de coisas que não devem ser descritas, e de todo modo, não é meu ponto. Meu ponto é que em determinado trecho da narrativa, a escritora sequestrada determinada que tudo aquilo não poderia existir, todo aquele mundo incrível e absurdo e genocida e violento e pragmático que ela descobria no século XXIII, e que não poderia existir pelo simples fato de que no fim das contas, apenas podem existir as coisas que são belas.

Não sei se todo o não-belo, se todo o feio desaparece do mundo pelo fato de ser feio, e de fato me parece que antes de se fazer o feio desaparecer, há ainda outra opção, que é a de fazer do feio o motivo de uma existência heroica, e afinal uma pessoa pode viver belamente da destruição das coisas que considera feias, seja lá como ou com que dicionário suas feiosidades e belosidades são definidas e exemplificadas. No mais, o que me espanta é que no fim das contas, se por um lado há tantas explicações para o mundo, tantas psicanálises, ovos e galinhas brotando eternamente da terra, tantos deuses e bíblias e grandes montanhas andinas que um dia caminhavam pela terra, no fim das contas, essa também é daquelas que servem.

Em outras palavras, viver me parece cada vez mais ser olhar para o outro lado diante daquilo que algo dentro de mim entende que é feio (a estética, a estética, nada tão ágil, nada tão rápido no gatilho do faroeste que é o cérebro quanto a estética). Depois até pode chegar a razão, com toda a sua gorda e arrastada lentidão, e fazer sua crítica socialista as definições de feio e de não-feio, mas isso porque a crítica socialista é ela também o belo, pois a razão e todo o iluminismo no fim das contas consistem em grande parte justamente na tentativa do sequestro do belo pelo racional. E o que não é a razão senão uma grande mistura de pensamentos demorados e impulsos estéticos impensados, sofismas que tentam transformar tudo o que é feio e torto e mesmo o próprio belo em algo belo, porém com rótulos intelectuais e portanto, também ainda mais belos?

Olhar para o outro lado é sempre uma das opções, pois a outra é destruir o que é feio. Nesse sentido, imigrar também pode ser destruir, assim como destruir também é reconstruir. Na mente de quem parte ou de quem foge, sempre ficam escombros, e toda uma grande operação de reconstrução que tenta fazer com que tudo tenha as devidas cores e os sons dos devidos pássaros e fontes. A nova construção costuma se chamar memória, e seus concretos são tão maleáveis que se transformam com a força das betoneiras e dos altos-fornos do pensamento.

Aliás, nada é tão recorrente quanto olhar para o outro lado e tentar encontrar uma maneira bela e sem arestas de todo o feio que se vê no mundo, e que é quase que todas as coisas, e por isso toda a dificuldade em combinar o mundo com os sapatos e com a cor dos olhos.

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O aspirador de pó e Griffintown

Agora que passou a mudança, e passaram as burocracias, o olhar perdido em busca de novidades, um pouco em busca do olhar perdido dos outros também (será que os olhos dos outros se perdem em mim? difícil parar de pensar nisso), enfim, passados os primeiros dias, tudo se acalma e dá para sentar um pouco e para descansar um pouco.

Charlotte agora começa a aprender a se comportar em casa. Também se acalma, se deita na frente das portas fechadas ao invés de miar. Acostumou-se com as portas fechadas em três ou quatro dias. Eu me bato nelas tem mais de vinte anos.

Por outro lado, teve uma ajuda especial. O monstro do aspirador, que eu e Lidia ligamos, especialmente a noite, quando tentávamos dormir e Charlotte queria entrar. Para cada miado, o aspirador soltava um rugido assustador. No princípio para Charlotte deve ter sido o pavor, imagino. Depois, entende-se que se o miado cria o medo, o silêncio sempre pode fabricar a tranquilidade. E é curioso isso de ter de aprender o silêncio, e não o contrário.

Provavelmente, todos deveríamos ter um pouco de aspirador de pó por detrás de alguma porta.

Na terça foi o filme a céu aberto, le Cinéma sous les Étoiles no Parc Saint Gabriel, e toda aquela história sobre o incrível estábulo de Griffintown, toda a resistência a especulação imobiliária, tudo cheirando a grama e a toalhas de piquenique. Há uma cena em que a câmera passeia com a carruagem pelas ruas de Griffintown, o cocheiro, o último deles, apontando os prédios novos, dizendo o que eram como se ainda os visse, e nossos olhos se esfregando para tentar ver também. O cocheiro dizendo que as pessoas já não dizem mais bonjour, que as mudanças do mundo são a questão da politesse, e ele diz bonjour, e um jovem lhe olha debaixo, assustado, talvez confuso.

Esse olhar assustado do jovem me perseguiu depois do filme. Bonjour. E ao mesmo tempo era tão difícil desejar que um estábulo de cavalos de passeio chamado Horse Palace continuasse a existir. Estavam todos tristes e todos sendo demolidos. Também eles antes demoliram. O chão parece asfalto mas é sempre o esqueleto de alguém.

De resto, estava lá a diretora, conversava com a plateia que era de Griffintown, sobre o filme que se passava em Griffintown, debaixo de estrelas que brilhavam como elas brilham em Griffintown. E nunca o cinema me pareceu fazer tanto sentido. E nunca o mundo me pareceu poder ser tão pequeno. A ponto de alguém gritar com uma câmera, e ser ouvido, mesmo apesar de estar tão perto.

 

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Notas abertas dos dias de Montréal

O problema tem sido acordar, porque é quando consigo emprestar palavras para o que espero do meu dia. Ir ao supermercado, voltar do supermercado, misturar alfaces e um salame vegetal, encontrar um pão que caiba, e então chamar de almoço. Retirar o alarme de incêndio, antes e depois (o almoço é o incêndio, aparentemente). Fazer carinhos em Charlotte na hora certa e evitar fazê-los na hora errada.

Penso então que é curiosa essa vida em que os carinhos são planejados. Mas de todo modo, curiosa também é a vida em que planejamos os planos.

De resto, a rotina é um balão no qual soprei tanto gás hélio (daquele que só sai de pulmões) que agora voa, e eu fico pulando aqui embaixo. O que fazer de verdade da vida? Em três meses, há a faculdade, e uma faculdade costuma servir para dar sentido. Mas e antes, o que serve ao sentido?

(Charlotte mia do lado de fora do escritório. Não devo abrir a porta para que não pense que foi ela quem a abriu, que foi a força dos miados, que é maior do que todas as portas, etc, etc).

Ultimamente, tenho tentado me convencer de que faz sentido a bricolagem, e todas essas tintas e lixas e coisas ásperas que tem de ser lixadas. Incrível a quantidade de asperezas no mundo (seria esse o sentido: torná-lo liso? há algo de fascista em tudo isso). Não vejo porque não fazer. O problema da bricolagem é que ela é tudo o que há no mundo que está fora de mim, e que desconheço, pois que sempre martelei apenas para dentro, e pintei para dentro, e apertei parafusos para dentro. Para fora, sou duro. E é difícil dar sentido quando se está duro.

Com a língua é o mesmo.

Acho que na hora de brincar de sentido, sempre recorro a escrita. Ainda que seja apenas uma duplicação da minha própria confusão, pelo menos através dela consigo enxergar alguma coisa. Como se escrevesse janelas, e lesse minhas cortinas abertas.

Ler um livro no metrô, também faz sentido. Ou pegar a bicicleta no depósito da varanda, apoiá-la no joelho e então andar ao lado dos carros, com menos rodas e mais vento no rosto, e os dentes de leão que voam e nos mordem por dentro, suaves, antes de virarem um espirro. Tudo o que parece heroico faz sentido. Talvez seja isso o que devo guardar por hoje.

Amanhã talvez vá ao jardim comunitário. Depois, o curso de francês. Tudo bastante aleatório, e um balão que desce aos poucos do universo, murcho, de novo, querendo fazer cara de rotina.

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As aventuras de Berubim

Berubim dormia e tentava apanhar seus sonhos no teto quando foi acordado por um senhor. O senhor, que vestia uma camisa xadrez com gola xadrez, disse a Berubim que não deveria dormir desta maneira quando havia tantas coisas a serem feitas no mundo e fora dele, e disse ainda que tinha visto seus sonhos e que eram um desperdício.

Antes que Berubim pudesse responder com algum argumento convincente, o senhor já entregava nas mãos de Berubim uma pá que tinha cinco vezes o seu tamanho e que também era xadrez, além de uma pequena bacia cheia de terra, que de fato não era uma bacia, mas talvez um copo um pouco grande.

Como Berubim não conseguia escavar aquele copo com sua pá xadrez, pensou que talvez tivesse algo errado, e foi quando teve a ideia de escovar os dentes, pois que jamais se sentia capaz de qualquer coisa sem antes escovar os dentes, e assim se dirigiu ao banheiro e foi no banheiro que encontrou o segundo senhor.

 O segundo senhor tinha roupas muitos curtas e todas elas eram verdes e quase rasgavam, e por isso ele parecia uma pequena árvore. Este senhor disse então a Berubim que perdia seu tempo com aquelas escavações, e que o melhor que Berubim tinha a fazer era voltar para sua cama e apanhar todos aqueles sonhos que estavam voando e guardá-los em arquivos organizados de A a Zê com pequenas etiquetas rotuladas com caneta esferográfica de cor vermelha.

Berubim de todo modo não podia concordar pois não tinha canetas em casa, muito menos as de cor vermelha que eram as mais violentas e porque piscavam durante toda a noite, e por isso quis escovar os dentes ainda assim, pois estava convencido de que esse era o primeiro passo antes de todos os outros. Sua escova, porém, havia encolhido ao longo do dia e era suficiente apenas para escovar um de suas dezenas de dentes.

Assim, Berubim escovou um terço de cada um dos três dentes mais visíveis e então pensou em voltar para sua cama como lhe havia sugerido o senhor verde. Foi então que se lembrou que havia perdido sua cama no sonho e que agora restava apenas um pouco de chão quadriculado. E então Berubim voltou a cavar, e enquanto cava, tenta sempre sonhar com uma cama, e nunca consegue.

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Mudanças de mundos

Violeta acelera o passo, sente que estão ficando para trás. Mal ouve quando Erre lhe chama, a voz vindo detrás, abafada, Erre sempre tão lento. “Violeta!”, Erre grita mais uma vez, mas agora já é tarde, pois já está muitos metros a frente de Erre, e está claro que Violeta não irá parar, não irá voltar ou ver o cachorro perdido no meio da rua, encontrado por Erre com o olhar manso, um olhar pastoso que escorre pelo chão e se mistura no asfalto quente. Tudo derrete nessas horas, Erre pensa, e pensa que provavelmente deveria seguir em frente, afinal. De todo modo, está morto, não há nada a se fazer. E ainda assim, sente que há algo de errado em deixá-lo assim daquela maneira, perdido e morto no meio da rua, algo errado em correr atrás de Violeta mesmo que Violeta não o chame, algo errado em voltar a gritar os mesmos gritos de guerra pela mesma causa justa e grandiosa pela qual gritava há apenas alguns instantes, e ainda mais errado quando nenhuma palavra lhe vem a mente quando cheira o ar e o ar tem cheiro de escapamento e de pele queimada, mas agora há um cachorro morto e parece que é preciso parar para pensar, para pensar em uma palavra para esse ar todo, que ficou pesado e está caindo em suas mãos.

***

A terra parece se sacudir quanto mais rápido se anda, como um pequeno terremoto. “Talvez seja mesmo um pequeno terremoto”, diz Violeta, que diz também que “seria bom se conseguíssemos provocar ao menos um terremoto”, toda essa gente aqui afinal e para quê. Mas Erre não entende o que conseguiriam com um terremoto. Isso, claro, considerando que se tratasse de um terremoto de verdade, mas como poderia um grande sacolejo de todas as pessoas, e árvores e ônibus e vasos de flores brancas e placas de trânsito poderia mudar alguma coisa? Não, tem de haver uma relação entre as coisas, não se pode simplesmente pensar que se pode mudar alguma coisa no mundo simplesmente porque se conseguiu fazer alguma coisa no mundo.

— Você ainda está pensando no cachorro, não está?, pergunta Violeta, a voz saindo pelos poros.

Erre não sabe se ainda pensa no cachorro. Recebe um cartaz de um colega ao lado, todo branco e pintado a dedo e a tinta guache por alguém e não sabe quem. Pensa que poderia saber através das digitais de tinta guache no cartaz, não seria difícil, iria até a delegacia e poderia fazer a denúncia, isso, claro, se ele fosse de fato de um espião infiltrado. Teria um plano se ele fosse um espião infiltrado, e o único problema é que provavelmente não era, e que as coisas são muito mais fáceis de se fazer desmoronar do que qualquer um dos seus contrários.

— Estou apenas pensando que não se pode fazer uma revolução com qualquer coisa, Erre responde por fim, ainda que já não se lembre bem do que fala. Às vezes as frases vem apenas como algo que deve ser dito, como se já tivesse ouvido essa mesma frase antes, neste mesmo contexto, e já não se precisa mais pensar e isso é muito prático. Já Violeta não se esquece das coisas, pensa nelas o tempo inteiro, e pensa agora mesmo no que irão comer hoje à noite. Não tem arroz, ela pensa, e é preciso ter arroz. Está tão cansada, e devem ter que ir ao mercado antes de voltar para casa. Por tudo isso, e porque está em uma manifestação e porque deve entrar no espírito da manifestação para que ela funcione, ela fecha os olhos e se concentra para imaginar, e então imagina que não está cansada, que lá fora há muitas nuvens, que há trovões, que há uma grande tempestade de suco de laranja e tudo está bem, tudo está bem. E então abre os olhos.

— Não tenho nenhuma dúvida de que se pode fazer a revolução com qualquer coisa, Violeta responde por fim com a boca, enquanto a mão direita atira um objeto contra o vidro de um sedã vazio, cinza-chumbo, um carro entre tantos outros, disparando seu alarme assustado, como são assustados todos esses carros, assustados e ninguém mais se preocupa com eles. Como crianças de um jardim de infância, e logo é preciso dizer alguma coisa calma e sossegada, como dorme neném, que a cuca vem pegar, que a cuca vem pegar, e então eles já vão ficando mais sonolentos, e se fazem umas carícias de leve na cabeça e já estão dormindo de novo, quando Erre pergunta a Violeta baixinho o que ela tinha atirado com a mão direita e ela responde que tinha sido qualquer coisa.

***

Agora Violeta sorri, como se um sorriso pudesse vir assim sem motivo, quando as pequenas vigas que seguram o mundo já estão fraquejando, ou talvez nem sejam vigas, apenas calços de madeira, ou tampas de garrafa de refrigerante, apenas o suficiente para que o mundo não balance demais quando se apóia nele de um lado. Erre quer sorrir assim também, quer dar uma sonora gargalhada, mas também não vê a que isso leva, nada disso está levando a nada, já a muito tempo, e Erre olha para os lados procurando por uma placa, uma bendita placa de rua para que possa estar em algum lugar. Mas Erre não está em lugar algum. Comprar margarina, mas comprar pão também, e provavelmente farinha de trigo e de linhaça, provavelmente tinham acabado, elas sempre acabam as farinhas, sempre na hora errada. Não vê como teriam tempo de ir no mercado. A não ser que fossem no outro, e seria o cúmulo e seria hipócrita, e Erre sente raiva pois sente que Violeta está pensando nisso, em ir no outro mercado, e quando olha para Violeta ela ainda sorri. Mas agora Erre pode ver o outro lado do sorriso, pois todo sorriso tem pelo menos dois lados, e alguns tem cinco e dezoito, e se formam pontes para que as pessoas atravessem os sorrisos de um lado para o outro, tudo muito alegre nesse mundo, muito jovial, e há um rapaz, um adolescente ele diria, sentado em um degrau que é quase chão, e parece chorar ainda que não chore.

— Ele não está te vendo, Erre diz por fim, mas Violeta o ignora, seu sorriso o ignora, Erre sente um sorriso sarcástico debaixo do sorriso simples e carinhoso que está por cima, como se fossem duas camadas de dois sorrisos diferentes, sobrepostos como um bolo, como tudo o que vem em camadas, uma escondendo a outra porque sempre deve haver algo para esconder outro algo. E aonde diabos estão eles, afinal? Não há nomes, Erre grita para si mesmo, e grita para si mesmo que não se pode fazer uma passeata dessa maneira, não é possível.

— Ele não está te vendo, estou te falando, Erre continua. E se visse, de que adianta? Você acha o que Violeta, que ele vai se levantar feliz e contente porque alguém sorriu para ele? Que os sorrisos saltam das bocas das pessoas e contaminam a boca alheia como doença? Por que não lhe dá um beijo de uma vez ou não lhe atira uma pedra como fez com o carro antes?

— Você tem razão, talvez eu devesse beijá-lo, mas você não tem razão, não era uma pedra. Que droga Erre, do que adianta parar de sorrir? Talvez devesse sorrir permanentemente, um sorriso perene, ascético e solidário para todos os que possam passar por mim com um déficit de sorrisos, todos os que precisam ver alguém alegre para saber que a alegria ainda é possível, porque essas coisa se esquecem, ou porque os sorrisos desentopem alguma coisa nas pessoas por dentro quando se passa por um.

Violeta segue caminhando e logo o rapaz fica para trás, ficando para trás o mesmo olhar triste e compenetrado em seus cadarços de tênis, um desamarrado e o outro não. Talvez fosse preciso ir para o outro mercado afinal, mas sabia que Erre não gostaria de admitir isso, não justamente naquele dia, mas então o que fazer? Também não sabe muito bem o que está fazendo, talvez não dê mesmo em nada afinal, mas não quer pensar nisso agora. Seus pés batem contra o asfalto e fazem barulho, e fazem plac, plac, plac. Seria isso uma manifestação, o som da borracha de seu All-Star contra um asfalto quente e bitucas de cigarro e restos de chicletes? Falarão com alguém no final, serão recebidos, é verdade, não se esqueceu disso, sim, serão recebidos, por uma pessoa muito grande e muito poderosa, mas e depois? O que significa isso, afinal, esse falar? Imagina sua voz saindo pela sua boca e entrando dentro de ouvidos poderosos em uma cabeça poderosa que irá processar sua voz como se processam aqueles troncos enormes de cana e no final tudo vira caldo e a voz também vira caldo, e se bebe e é incrivelmente doce de enjoar, e então depois o quê?

Depois Violeta olha para o ar, como que procurando algum sinal de vozes anteriores, como um grande depósito das coisas ditas, mas não uma coisa dita qualquer mas sim aquelas ditas com força que são as coisas verdadeiramente importantes. Seus olhos ouvem pássaros. Violeta se lembra do carro e do vidro quebrado, do alarme, aquilo poderia ser um problema afinal, e aliás de quem seria aquele carro? Pensa que poderia ser do rapaz, do adolescente choroso, seria possível? Não, o carro não seria dele com aquela idade. Pensa então que o mais importante era o gesto, e que se o gesto havia sido visto por tantas pessoas, e se todas elas tivessem entendido a importância do gesto, e que há tantas coisas a serem estilhaçadas no mundo e tantos cacos a serem criados antes que as colas possam pensar, então talvez valesse a pena, e o rapaz e o vidro seriam sacrifícios. Pensa nas lágrimas do rapaz como estilhaços, e então percebe que eles cortam. Poderia colar as lágrimas do rapaz depois, não poderia? Pensa novamente nas vozes, soltas no ar como sacos plásticos, e subitamente tem a ideia de que as vozes talvez ecoem pelos ares para sempre, apenas que de uma maneira que eles mesmos não podem compreender, mas que talvez outros entendessem, talvez os pássaros. As mesmas vozes, repetidas infinitamente, a cada instante, a cada instante, em eterna ladainha. Sim, como o canto dos pássaros. Violeta sente vontade de parar, e então quer cuspir naquele sol estúpido, mas já não tem forças.

***

Erre tenta se esquecer do cachorro morto, tenta arremessar a imagem, o mais longe que foge com a força dos braços. Seria mesmo dos braços que viria a força para o esquecimento? Provavelmente não, provavelmente há outro músculo mais adequado, escondido em alguma das cavernas do corpo. O cachorro morto, porém, logo volta com o vento, suavemente galopando em direção à lembrança. Erre tem a impressão de que está enjaulando sua alma dentro de sua mente, como se ela quisesse partir para um outro mundo de almas caninas e ele não permitisse, ele que insiste em se lembrar, Erre que tem os braços do esquecimento tão atrofiados. Porque havia parado para o cachorro morto, afinal, o que poderia ter feito? E ao mesmo tempo, tudo tão indigno, que pensa por fim que era isso o que queria ter feito, queria dar ao cachorro morto alguma dignidade, dessas em que as pessoas não passam por um corpo estendido no chão em uma rua e apenas o ignoram. Queria gritar e chorar por ele, pois é assim que se faz com aquilo que morre, e que por morrer tem ainda seus direitos em sua morte, ainda que metafísicos, direitos de que as pessoas vejam o seu corpo sem vida, e que ao vê-lo, elas parem. Mas a passeata não parou. E talvez fosse mesmo absurdo isso tudo, absurdo parar uma passeata por um cachorro morto, para purificar o quê, afinal? Muito pelo contrário, os mortos, acima de tudo, eles estão mortos, sejam eles caninos ou humanos, e viver pressupõe passar por cima deles, literalmente ou não, ainda que para isso seja necessária toda uma reeducação da alma para que a alma entenda de uma vez por todas que não, que ela e o corpo não são uma mesma coisa, e então entender que o corpo é como a terra, ou como o lixo, e aprender a passar por cima dos corpos, pois que qualquer outra coisa seria mera politicagem. Seria vestir o próprio corpo com o corpo alheio como quem veste uma jaqueta, de couro, negro como o asfalto quando novo.

Violeta parou de caminhar, tem uma pedra nas mãos e escreve algo na rua. Basta apertar uma pedra contra a outra para que uma pedra escreva na outra. Talvez seja assim também com os seres humanos. Seria isso o agir, o transformar o outro? Erre imagina um corpo que se esfrega em outro corpo, e então o transforma. Os corpos humanos não são duros como as pedras, são macios, esfregá-los não fará nada além do amor. Não que o amor não seja capaz de escrever, pelo contrário, ele escreve até mais profundamente do que uma pedra, pois o amor não se quebra quando se escreve com força demais, e o amor não fura e nem sai sangue, e o amor não pode ser atirado contra uma janela de um sedã cinza nem disparar um alarme. Talvez então fosse melhor amar, simplesmente amar, acabar com toda essa manifestação estúpida que não chega nunca a lugar nenhum e amar, a tudo e a todos até que todas as palavras de todos os manifestos tenham sido escritos em todos os corpos. Impossível? Por que, por que seria isso impossível?

Violeta volta com sua pedra nas mãos. Por um instante, pensa que ela atirará também esta pedra contra algum carro estacionado, talvez contra a janela de algum estabelecimento comercial suficientemente burguês, ou quem sabe um banco, mas ela não atira. Não viu o que Violeta escreveu, mas pode imaginar. Violeta não gosta de frases prontas, diz que uma frase pronta é como uma estátua, e qualquer um pode ver e tirar fotos de uma estátua, e depois inventar uma história para a estátua, dizer que tinha um bigode ou que tinha um pombo sentado em cima do chapéu, e a estátua será apenas este pombo e este chapéu, duplamente eternizados de foto e de pedra. Por isso que é preciso escrever com muitas palavras e a cada vez com uma palavra diferente, para que ninguém pense que se trata de uma estátua e então tire uma foto.

— E se tiver sido a passeata?, Erre pergunta.

— O que tem a passeata?

— Se tiver sido a passeata quem passou por cima, quem atropelou e matou o cachorro? E então?

Erre sabe que está provocando Violeta, está tentando levar Violeta a algum tipo de limite, mas ele mesmo desconhece esse limite. Sente que deveria estar entendendo melhor as coisas que faz, mas não está entendendo. Olha para Violeta para ver se Violeta ainda sorri. Mas Violeta não sorri mais. Vê em seus olhos que ela pensa em derramar uma lágrima, mas logo desiste, e finalmente, decide substituir a lágrima por um olho fatalista. Os olhos fatalistas são secos, mesmo quando estão tristes.

— Então eu diria que é difícil andar sem pisar em cima de alguma coisa. E se contentar em saber que pelo menos, na maior parte do tempo, nosso chão é apenas o asfalto.

***

Ouvem um ruído de trem, vindo de longe. Violeta escreve um manifesto a batom na traseira de um carro. Além de manifesto é também um beijo, um grande beijo sem boca, sem saliva e sem língua, beijo apenas de palavras, e de batom. É todo o amor que está disposta a dar. Ou que pode dar. Violeta recebia beijos de sua mãe e de sua tia, e até de amigas da família quando era pequena, e se os beijos ficavam no seu rosto era porque o batom ficava no seu rosto, como uma espécie de prótese de todo o amor que recebia. Dos beijos tão curtos, que desapareciam quando se pensava neles, ficava o rastro. O batom como uma réplica do que acontece com a memória. Ficam os rastros. Depois vieram os homens, e então os beijos já eram mais longos, e se podia pensar, e se podia dormir sobre um beijo, mas aí então já não havia mais rastros. Erre lhe dizia que não gostava de lhe beijar de batom pois sentia que seus lábios não eram seus lábios, mas para Violeta era uma chance de capturar o rastro do beijo de Erre. Depois do beijo, afinal, o batom já não pertence mais a ninguém, ou então pertence aos dois, ao mesmo tempo em uma única boca-memória. No carro, o beijo de Violeta tem apenas o rastro, como uma pequena assombração. Aquelas bocas jamais poderiam se tocar, assim como uma pessoa jamais poderia amar a todo o universo, se não for através de próteses. Violeta sabe disso, e por isso cria todas as próteses do mundo para que o mundo possa vê-la, possa sentir aquilo que pensa e aquilo que tem a dizer. Na bolsa, Violeta carrega uma foto de Erre, três por quatro, tirada na rodoviária entre uma seriedade e um sorriso. Um rosto que Erre jamais faz, jamais além de uma fração de segundo, e ainda assim Violeta tem de reconhecê-lo, e se força a reconhecer a Erre naquela foto. Uma prótese. O trem parece se aproximar, o som das rodas girando cada vez mais alto e mais alto.

— Que trem é esse?, diz Erre, tentando gritar mais alto, do que a locomotiva, do que a passeata, do que os pássaros, do que o universo.

— É o trem da história, Violeta responde, segura.

***

As rodas giram, as rodas giram, as rodas giram, as rodas giram, todas muito barulhentas, todas muito contínuas, sem dar qualquer espaço para que qualquer coisa atravesse seu destino de rodas girando, ininterruptamente, sem pequenos silêncios para que se possa dizer algum argumento convincente que pudesse fazer com que as rodas parassem de girar, hesitantes, refletindo sobre suas próprias convicções.

Não, essas rodas não tem convicções e também não tem silêncios. Algumas coisas no universo tem convicções, e com elas se pode argumentar, e os argumentos podem ter algum efeito ou não. Outras coisas no universo apenas se movem. Neste caso, a pergunta que se deve fazer não é o que se deve dizer a uma coisa que apenas se move. Mas sim, o que se deve fazer posto que ela se move. Neste caso, se pode começar pensando que há coisas que apenas se movem que podem perfeitamente ser ignoradas. Erre às vezes ignora o sol pela manhã, e pode até ignorar que a manhã se transforma em tarde, e pode também ignorar depois que a escuridão volte a tomar conta de tudo o que era claridade, assim como o vazio toma conta de um estômago esquecido enquanto os olhos olham para o alto e enxerga ranhuras no teto e as ranhuras formam desenhos, e isso basta de universo e não é necessário mais nada. Sim, há coisas que apenas se movem e que podem ser perfeitamente ignoradas.

Mas neste caso, Erre não pode ignorar, ou talvez não saiba como, e por isso pergunta a Violeta se não deveriam estar correndo atrás de um trem quando este trem é o trem da história, e Erre espera por uma resposta, e se não há resposta, é porque Violeta também sabe que pode ignorar certas coisas que se movem, assim como se podem ignorar algumas que falam. E então Erre corre, e corre atrás do trem, e as rodas do trem giram, e giram, e giram, e Erre pensa que talvez houvesse alguma corda que pudesse puxar pairando pelo ar, algum botão que fosse elétrico ou algum gesto que uma simples mão pudesse fazer para que parasse, para que olhasse, ou para que se importasse. Haveria ali algum maquinista para fazer este papel, de alguém que se importasse? Mas de todo modo Erre já está sem fôlego, e as rodas giram e giram e o trem já está longe e longe de todos os olhos e olhos.

— Ele não para aqui, e tampouco nós somos os passageiros que ele procura, diz Violeta finalmente, com uma voz distante. Mas não se preocupe, ele não vai para nenhum lugar interessante.

Mas Erre não está certo disso. Talvez possa seguir caminhando por aquela marcha por mais vários dias, meses, e poderia seguir mesmo por toda a eternidade, marchando sem jamais chegar a lugar algum, sem jamais dizer realmente porque marcha, sem ouvidos que o escutem todas as palavras razoáveis nem as raivosas que eles tem a dizer nem as que não tem, e talvez a marcha pudesse se transformar em uma vida por si só, e suas rodas girariam e girariam, mesmo sem rodas, e sem fumaça e sem trilhos e talvez até mesmo sem maquinista, e Erre poderia chamar aquilo de vida. Mas então olhava para o trem e para as janelas do trem, e via os vagões lotados, e via pessoas que também marchavam e que também não sabiam para onde, nem quando desceriam ou se desceriam. Olhavam para jornais repletos de figuras ou então olhavam para o teto e encontravam grandes cartazes coloridos que falava de pessoas, e essas pessoas não estavam naquele trem. Mas então, onde estão todas as pessoas dos cartazes coloridos? Talvez estivessem do outro lado da janela, para onde elas também olhavam, ainda que eu não diga que olhassem atentamente, pois ninguém olha para ninguém nem para nada atentamente enquanto as rodas giram e giram e giram. Aliás, talvez estivessem na própria manifestação, por que não? Mas e as outras pessoas, as que estavam dentro do trem, quem seriam? Talvez quisessem descer? Talvez estivessem esperando por Erre, torcendo por Erre, pedindo timidamente a si próprias que Erre as alcançasse? Erre não sabe. Não tem como saber. Tem apenas como correr, e ficar ofegante, e gritar ofegante coisas que talvez sejam ouvidas lá dentro, ou talvez não. Também isso é difícil saber. Por isso Erre se lembra novamente dos pássaros que cantam, e que talvez também eles esperem um dia serem ouvidos pelos que estão do lado de lá de seus cantos, e que talvez brinquem de espera já há tanto tempo que já entendam que cada voz tem seu lado de cá e seu lado de lá de sua própria janela. Erre se lembra então da janela de carro quebrada por Violeta minutos atrás, e do carro que respondia com todos os seus escândalos, berrando com a voz de alguém que não estava lá para berrar por conta própria, com um berro terrível de máquina e de bateria que se esvai como coração e de choro como aqueles que só as máquinas sabem chorar, e que retorce um ouvido humano por dentro de uma maneira tão estranha que não passa, que se entala no esôfago por onde passam as lágrimas que as humanas e não as , não passa porque não cabe, e faz tudo o que há de alma se perder por ouvir um choro que não é choro, e também por isso dói. E então Erre pensa que talvez seja isso o que se ouve ao se quebrar também a janela dos trens, e das manifestações, e talvez até mesmo a estranha janela dos pássaros. E se for assim, como se pode quebrar uma janela como a dos pássaros, ou a dos carros, ou a de um trem, de qualquer trem de qualquer história? Que objetos duros e pontiagudos podem ser suficientemente delicados?

Finalmente, Erre responde a Violeta que talvez todos os lugares sejam interessantes, ainda que não acredite realmente nisso, e que se estivesse no trem, provavelmente iria querer transformar o trem em alguma outra coisa, e seria tão difícil com todas aquelas rodas que giram, e giram, e giram. E agora Violeta está fazendo um aviãozinho de papel com um dos panfletos da manifestação e o atira com todas as suas forças para longe, e o aviãozinho dá cinco piruetas e meia no ar e volta, e seu bico bate na ponta do nariz de Violeta, que grita ai mas ninguém se importa com aviõezinhos que são de papel.

Violeta e Erre caminham sem dar as mãos. Violeta pensa que dar as mãos seria limitar aquilo que se pode andar. Um pedaço menor de asfalto seria coberto, e além disso estariam andando sempre no mesmo ritmo, como se todo o resto do corpo tivesse de viver uma vida copiada a partir do momento em que as mãos se colassem, as mãos como um condutor de individualidades, aberto nas unhas e por isso a mistura. As unhas de Violeta são grandes e são vermelhas. Violeta se arranha enquanto anda, arranha seu pescoço e arranha seu próprio rosto e sua testa, e tudo fica vermelho, e é como se saísse sangue, só que um sangue que não chega a sair. Um sangue preso, um sangue que quer arrebentar, mas não consegue. Violeta pensa novamente no mercado, não, não vai dar tempo de ir no mercado bom. O mercado ruim tem vegetais cheios de agrotóxicos, e tem funcionários cheios de agrotóxicos e tem patrões limpinhos e cheirosinhos que nunca são vistos e por isso Violeta pode apenas imaginar que sejam limpinhos e cheirosinhos. Violeta também os imagina carregando sacolas plásticas, dezenas de milhares de sacolas plásticas repletas de agrotóxicos que os patrões limpinhos e cheirosinhos carregam com as próprias mãos até o meio de uma rua deserta e atiram para que os ventos cheios de agrotóxicos se encarreguem do resto. Um planeta ensacado, pensa Violeta, e sua testa já não está mais vermelha e é como se nunca tivesse estado. A pele se regenera rapidamente, a pele está sempre se regenerando. Erre pensa que em Violeta, deve fazê-lo centenas de vezes por dia. Uma pele em eterna reconstrução, por mais que seja rasgada, por mais que seja violada, quem mais seria capaz de existir desta maneira? O que está debaixo da pele não se regenera tão facilmente. Talvez haja todo um mar de carne destruída por debaixo da pele de Violeta, mas isso ninguém pode ver e talvez ninguém possa sentir. Talvez seja assim também com o mundo, ou ao menos com as passeatas. Erre olha novamente para o asfalto, pisoteado impiedosamente por milhares de pares de tênis velhos e encardidos com suas milhares de solas de borracha, já tão usadas e já tão gastas enquanto o asfalto permanece inteiro. Não parece ser uma visão particularmente vitoriosa, não aos olhos de Erre.

Do outro lado, há outro grupo de pessoas, e este grupo de pessoas parece vir em sua direção. Passa pela cabeça de Erre que durante todo este tempo eles caminhavam sempre em uma direção, e não uma outra, mas que poderia ser uma outra. Não que isso não houvesse passado antes pela cabeça de Erre, mas era algo que ele sentia vontade de questionar, mas que depois se perdia. Este grupo, ao contrário, sabe que caminha em uma outra direção, pois parece fazê-lo de propósito. Erre vê o semblante de Violeta se inquietar. Se contorce, e depois se destorce, como um pano velho. “É uma contra-passeata”, Violeta lhe escorre pela boca, como se de voz economizada. O que seria uma contra-passeata? Erre não entende muito bem o que isso quer dizer. O bando se aproxima, carrega cartazes pretos e brancos e também alguns cinzentos, e alguns soltam berros e outros também, e Erre não entende o que dizem, e talvez Violeta entenda, pois Violeta sempre entende essas coisas e seus ouvidos sempre souberam separar bem os sons quando Erre canta e ela tenta ouvir alguma notícia de alguma rede alternativa que solta notícias, e elas caem em um ouvido de Violeta enquanto a música de Erre se desprendem pelo outro por serem muito mal cantadas e desrespeitosas com as próprias notas que elas se propõem a imitar. Além disso, o bando parece ter raiva, e parece querer parecer ser maior do que todos os outros bandos, os bandos de manifestantes, os bandos de pássaros, os bandos de passageiros de bandos de trem, os que cantam e os que não cantam, os que giram e os que não giram. Mas o que faria uma contra-passeata? Poderia anular a passeata que Erre e Violeta faziam? Seria essa a lógica dos poderes do universo afinal, e a cada passo que se ganha, há outro passo que pode tirar?

***

Violeta agora se prepara para dar pontapés nos manifestantes que caminham na direção contrária. Violeta não tem certeza de que se trate da melhor coisa a fazer, mas está resolvida a dar os pontapés. Colocar uma perna na frente da perna que passa, quando menos se espera, e então irá se espatifar contra o chão, um joelho ralado e um cotovelo, talvez mesmo o rosto. Violeta não gosta de atos violentos nem nunca gostou, mas não considera que isso seja um ato violento. É um ato necessário, assim como comprar alguns pães e também frutas e também cereais no mercado ruim mais tarde também será necessário. Talvez também precisem de margarina, mas apenas se derem algum tipo de desconto, dos que eles dão para clientes cadastrados. Violeta tem um cadastro no mercado ruim, mas consegue separar bem as coisas, e por isso não se sente mal com isso. Erre por sua vez não daria o pontapé, mas talvez fosse mais por algum tipo de covardia interna que ainda não entende muito bem. Ou talvez tivesse outro motivo. De fato, o que faria um pontapé além de furar a pele? Mexeria em algo por dentro?

***

Violeta e Erre correram o mais rápido que podiam, e agora já não sabem onde estão. Erre pensa que talvez não estejam em lugar algum e Violeta lhe diz que deve parar de dizer bobagens. De todo modo já está escuro, e não saberiam onde estariam mesmo que estivessem em algum lugar. Violeta já entendeu que não deixaram este limbo tão cedo, e que provavelmente não chegarão a tempo nem mesmo para o mercado ruim e comerão bolachas de água e sal no café da manhã. Talvez tenham um resto de pó para café em casa, mas seria para uma xícara, não para duas, e seria café ruim. Erre lembra que o café está fora da validade, mas nada diz. Tampouco diz algo para reprovar o comportamento de Violeta, que não foi de todo mal, o rapaz mal se derrubou no asfalto e já se levantava de novo, talvez as palavras que vieram depois tenham caído com mais força, e depois eles começaram com outras palavras, mas aí já não eram dessas de falar mas sim de correr por cima de arames farpados e de muretas com apoio para os pés, e de pisar os pés em outros pés e de respirar depressa e rasgar barras de calças e das pernas, e sair sangue mas não se sabe de onde nem porque, e de não saber como se chegou aqui, ou se chegaram em algum lugar ou ainda não. Amanhã de manhã, Violeta comprará o jornal e haverá uma foto de todos eles. Sabe que haverá uma foto pois viu que havia fotógrafos ao redor em vários momentos. Eram como vagalumes com suas câmeras que se acendiam e depois se apagavam, e quando se apagavam, desapareciam, como se deixassem de existir quando não havia luz. Como se existissem apenas ali, no momento em que a luz se acendia, como em um flash.

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Pequenos buracos negros

Um dia W estava em casa, e W comia o que provavelmente era seu almoço, ainda que na vida de W este tipo de coisa nunca fosse tão definida e nunca se dizia vou almoçar ou vou lanchar, os dentes sempre tomaram conta da boca de W e por isso W geralmente comia em silêncio. E era em silêncio que comia quando lhe chegou um pacote, que era grande, mas também era bege, com umas inscrições a caneta na parte de cima, mas não na parte debaixo. W pegou o pacote nas mãos e leu a parte de cima e tentou ler a parte debaixo, e quando viu que não havia mais nada a ler, agradeceu ao carteiro e voltou a cadeira aonde se sentava e comia antes de tudo isso, um prato com pequenas coisas sólidas que se escondiam debaixo de uma grande coisa líquida. Nem mesmo ele se lembrava o que era. E então pensou que isso de não se lembrar era uma coisa boa, e que afinal era capaz de surpreender-se consigo mesmo a cada garfada, e que poderia viver de pequenos esquecimentos.

— É incrível o quanto se pode divertir com isso!, ele gritou, provavelmente para sua esposa, e depois gritou novamente pedindo por mais pão, e então novamente refletindo sobre a natureza humana, e que seria talvez possível viver como uma sopa, talvez como a parte líquida da sopa mas, principalmente, como a parte sólida. E tudo era muito salgado, e não havia água em casa, nem leite.

Quando W enfim se levantou, quase já não se lembrava mais do pacote, mas se lembrou. Ao se lembrar, W se lembrou de seu conteúdo, do selo da Golden Iron Co. estampado na parte de cima do pacote, e se lembrou do fato de que não precisava abrir o pacote para saber o que havia por dentro,  e se lembrou de que sentia calor, e de que todas as portas e todas as janelas de sua casa estavam fechadas. E então riu de si mesmo, pois sentiu como se fosse uma pessoa dessas pessoas que se escondem em lugares fechados e escuros, cheios de arestas e de tijolos falsos que abrem portas para salas falsas que escondem cofres falsos. W nunca tinha nada para esconder. Em outros tempos, W se fechava em lugares escuros para esconder o chão dos próprios pés, pois que assim os pés se enganavam e começavam a voar. Mas também podiam se enganar e cair, como em um grande precipício, e o grande precipício jamais teria fim não fosse dona Bira chegar e acender a luz, pois dona Bira sempre chegava e sempre acendia a luz nos planetas e nas galáxias dos outros, e até hoje W cai um pouco quando vê dona Bira se arrastando pelas ruas. Mas isso eram outros tempos, e agora, já era tarde.

***

Daí que W precisava sair de casa, precisava encontrar com Ferreira, contar a história do pacote para o Ferreira pois quando o Ferreira ficava sabendo de histórias de pacotes, ele primeiro ficava pensativo, depois começava a imaginar coisas, depois ficava com raiva e batia em uma parede, pois o Ferreira sempre bate em paredes e é isso o que diverte W afinal. De modo que W precisava sair de casa, precisava ver Ferreira esmurrar uma parede, e a parede fazendo crac uma vez e depois crac outra vez. Claro que W precisaria antes se arrumar, ainda que talvez já estivesse arrumado, nunca sabia dizer muito bem afinal, havia vezes em que podia jurar que estava perfeitamente bem arrumado e ajeitado até sair de casa e descobrir que seu rosto estava em trapos, seus cabelos voavam e suas calças caíam, e por isso buscava um espelho desesperadamente para poder enxergar melhor, poder se consertar melhor, mas então já estava em público, as pessoas já riam de W e já era tarde. E quando esse tipo de coisa acontecia com W, ele achava que ria com a boca aberta e os olhos abertos e brilhosos, mas logo que conseguia um espelho descobria que na realidade chorava.

Só que agora W não tinha um espelho diante de si, e ao olhar ao redor, logo se deparava com a escuridão de sua casa, onde reflexo nenhum jamais poderia se produzir, e se atormentava. E se não fosse o reflexo do vidro da televisão desligada, W jamais teria uma imagem de si, jamais enquanto estivesse em casa, e quando saísse talvez seus cabelos voassem novamente, voassem como uma gaivota, com todas as suas penas e todas as suas caras de gaivota, voando para onde W não gosta de voar.

***

Ainda assim, W tinha o hábito de olhar para reflexos de si mesmo, e afinal, reflexos nunca faltam, e há sempre um espelho retrovisor, sempre um aparelho de televisão, sempre um par de olhos perdidos, sempre uma janela suficientemente limpa, ou suficientemente suja, dependendo daquilo que se busca encontrar do outro lado. E no caso, do outro lado, o que W queria encontrar era o resto de suas faces. “Usamos três ou quatro faces apenas ao longo da vida”, ele dizia, “sem saber que tipo de pessoa seríamos se usássemos todas as outras”, ele completava, e todas as outras faces eram milhões e milhões, cada uma representando um W diferente, um W desconhecido, com infinitas possibilidades, um W que ainda não havia agido no mundo, e isso o entusiasmava. Houve uma vez quando criança em que W olhava para si mesmo em uma pequena poça d’água – W fazia suas próprias poças d’água com pequenos copos de água quando era necessário – e descobriu que poderia franzir o cenho de uma maneira em que seu cenho jamais havia sido franzido, e que o deixava com uma cara de sério que era mais séria do que a dos outros. Gostava de usá-la para andar de bicicleta, e sua nova cara combinava com o vento, combinava com seu cabelo que voava, com o pó de brisa de orvalho e fumaça de chaminés da grande siderúrgica. Depois, W voltava para casa e fazia uma nova poça d’água, e se olhava com o rosto ainda mais sério, franzindo ainda mais o cenho, agora cheio de pó preto de orvalho metálico e brilhoso, e se sentia poderoso.

Mas agora eram outros tempos e W não gostava de pensar nessas memórias, queria pensar em seu pacote, apenas no pacote, e não queria crianças bagunçando suas ideias. Franziu o cenho como quem tranca memórias desnecessárias em uma pequena prisão de rugas, de pele e de carne, enjauladas com o mesmo franzido com que W costumava andar de bicicleta. O pó preto já não se misturava mais no rosto com orvalho, e por isso já não brilhava, deixando pequenos pontos pretos e opacos espalhados por um rosto sombrio.

***

— Diabos, alguém tem que abrir as janelas dessa casa, ninguém enxerga nada desse jeito, exclamou W, provavelmente para a sua esposa, ainda que logo começasse a abrir as janelas por conta própria, iluminando por conta própria a pequena mesa de madeira e as três pequenas cadeiras de madeira, todas elas bambas, e W quando se sentava nas cadeiras para comer e levava o garfo para dentro de alguma coisa mais sólida, a cadeira tombava para um lado e fazia tum, e fazia tum de novo na volta. Iluminou-se também um pequeno armário, e em cima do armário se iluminou também uma pequena foto de W, um W amassado e amarelo que entrava em uma faculdade amassada e amarela, pois tudo nessa região era amassado e amarelo e quente, e por isso era tão necessário fechar as janelas, fechar as janelas sempre, ainda que agora elas estivessem abertas e deixavam apenas um pequeno facho de sombra que dava para a cozinha e terminava em uma pequena entrada da parede. W ainda não tinha notado aquela entrada da parede, uma entrada tão escura e tão remota que nem mesmo o sol mais forte que há no mundo conseguia penetrar.

E foi assim que W, hipnotizado pela escuridão e por todas as possibilidades que ela oferecia, resolveu que era ali que deveria permanecer o pacote, e que ninguém mais o veria pelos próximos meses, ou quem sabe pelos próximos anos, quinze, ou talvez trinta.

***

E algumas coisas mudaram na vida de W depois de guardar o pacote no espaço escuro da parede da cozinha. A primeira mudança mais notável aconteceu logo ao sair de casa, posto que geralmente gritaria, presumivelmente à sua esposa, que estava saindo de casa, que iria se encontrar com o Ferreira, ou o Juca, ou iria ao trabalho, ou compraria cigarros brancos com cheiro de hortelã, ou ainda não gritaria e sairia em silêncio, pois às vezes é melhor sair em silêncio e deixar os gritos e as respostas para a doce criatividade da imaginação de uma segunda-feira de manhã. Desta feita, porém, W deixava apenas um bilhete, preso à geladeira por um ímã com a logomarca da Golden Iron Co., e o ímã era de plástico revestido de cobre e dizia algo genérico sobre a produção de metal e sobre a imensa grandiosidade da empresa de maneira geral, porque se pode ser grande de maneira geral, e tudo isso segurando bravamente um enorme papel sulfite, quase todo em branco, apenas coberto por alguns pequenos pontos pretos  e uma linha apressada em tinta azul, e a tinta azul dizia que W, mas que já voltava, e nada mais.

E foi assim que W foi, caminhando pelas ruas até se encontrar com Ferreira. Não sabia o porquê de ter escrito um bilhete quando poderia ter dito qualquer coisa com sua própria voz ou quando poderia ter gritado, mas escreveu um bilhete e assim estava bem, e não precisava entender estes anseios da própria mente, sendo já tão complexos e tão confusos os atalhos da cabeça humana, afinal. E quando encontrou-se finalmente com Ferreira, conversou sobre futebol e sobre bebidas, sobre o céu e o clube social, talvez uma piscina, e Ferreira lhe falou de um novo cachimbo e de um novo cheiro que saía do novo cachimbo e W ficou bastante interessado, e então W quis falar do trabalho e quis falar de lingotes e de coisas que derretem, e foi então que as coisas começaram a acontecer. W não conseguia falar do trabalho, e também já não conseguia mais falar sobre a fábrica, e sempre que tentava abordar o assunto, sempre que se aproximava das máquinas de prensar, dos lingotes, e mesmo da laminação e do cafezinho e de todas as cores de todos os botões, já não conseguia falar, e sua voz tangenciava a fábrica e ia parar em cigarros, e a fumaça cinzenta dos cigarros aromatizados de W subia silenciosa rumo ao teto e desaparecia como um pequeno fantasma de hortelã.

Neste momento, fazia sol como sempre fazia sol. W suava e suas gotas de suor embotavam seus olhos e seu cenho se franzia de maneira involuntária, sem que W quisesse parecer sério ou andar de bicicleta ou esquecer de algo. Ao seu lado via-se o grande morro e todas as suas crateras, pequenas e grandes, como se o morro estivesse com fome, como se o morro estivesse comendo a si próprio. Via-se também um grande letreiro, quase tão grande quanto o morro, e por isso talvez, quase tão faminto. “Sua bebida, sua liberdade”, dizia o letreiro. W imaginou grandes dentes de ferro saindo de dentro do grande morro. Imaginou também que gostaria de ser livre. Não imaginou o que isto significaria, mas aquele não era o momento de imaginar significados. Conversas como aquela não se prestam a estas questões semânticas, e ele precisava dizer algo já que já não poderia mais falar sobre o trabalho, sobre os lingotes, ou sobre o cafezinho, ou sobre as cores de todos os botões.

***

E é claro que seu Ferreira estranhou o comportamento de W, o sempre tão falante amigo W, tão inimigo dos silêncios a ponto de sempre estar em busca de preenchê-lo, sempre encontrando um assobio onde não há vento ou encontrando uma boa mentira para que o ar não fique vazio demais e o vazio não acabe entrando na mente, como ele dizia, porque assim é que acontece com as coisas que são feitas de silêncio, quando menos se percebe, elas se espreitam e se esgueiram, e quando menos se percebe, ele dizia, entram no primeiro buraco que encontrarem pela frente, e podem entrar pelas orelhas e quando se vê, o silêncio toma o cérebro das pessoas, assim como toma os corredores das minas quando se está lá embaixo e se tem de assobiar e contar mentiras para sobreviver. Pessoalmente, seu Ferreira preferia as mentiras aos assobios, pois as mentiras não precisam de vento para espalhar, é o ouvido ele mesmo que as suga por conta própria, e por isso é que elas são de fazer mais barulho e tudo o mais.

Mas naquele dia, W não estava falante e não assobiava, havia deixado o silêncio entrar, e o silêncio havia entrado e havia brincado e dançado em seus ouvidos e em suas mentes, e isso acontece e não há nada demais, só que logo outras pessoas passaram a sentir a mesma coisa e já não havia mais ar para tantos silêncios, de modo que W teve de falar.

E então já não houve mais silêncio. Pois W falava de alegrias e de coisas que são bonitas e refrescantes, e falava que algumas coisas são fascinantes e que outras coisas são interessantes, e que é importante se sentir bem consigo mesmo, ou fazer aquilo que se quer, ou comer o que se quer comer ou o contrário, ou ainda que é errado errar e que o correto seria acertar, e que é sempre melhor ser melhor, assim como é melhor que o melhor seja mais barato do que todos os outros que são piores e mais caros, e tudo isso além dos assobios, sempre os assobios soprados com a boca bem fechada e contraída, e W ficava às vezes vermelho de tanto assobiar, mas lhe fazia bem, e as pessoas todas gostavam e voltavam a ficar cada vez mais suas amigas, afinal, quem não gosta de ouvir alguém assobiar de vez em quando, e uma boa música no ar é melhor do que música nenhuma voando, ou estatelada pelo chão, sem pássaro com asas que a carregue.

***

E W gostava de viver assim, de maneira vaga e genérica, pois todos gostavam de ouvir suas frases vagas e genéricas e se sentiam bem na companhia delas, pois se identificavam e ficavam felizes com o fato de que, afinal, havia alguém que sempre dizia algo com o qual eles podiam concordar, e eles se sentiam bem concordando. E quando W recebeu outro pacote, já não precisou parar para qualquer tipo de ruminação, e tampouco se preocupou em conferir seus reflexos em poças de água ou televisores ou com a clareza do sol que invadia suas paredes morosas e derretidas, tão delicadas e tão apertadas para que nelas coubessem outras pequenas escuridões, pois que cabia uma e já estava bom assim. De modo que W abriu a porta de sua casa e depois a fechou, não sem antes deixar um bilhete no ímã da geladeira que dizia bom dia e boa noite, entre outras coisas alegres e joviais.

Ainda era cedo pela manhã, mas não tão cedo e já não havia tantas pessoas pelas ruas, e apenas uma e apenas outra, acenavam e partiam, e W no geral passava despercebido pois assim era que gostava de passar nessas horas, despercebido, ora, era impossível ter uma sombra ou um caminho mais discreto nesta cidade, impossível debaixo deste sol que torna indiscretas todas as coisas discretas, e depois as queima todas, e se pode sentir a fumaça das coisas e das pessoas discretas saindo de suas casas e de suas cabeças, e talvez por isso este cheiro, este cheiro enferrujado, sempre perfurando o céu. Mas W seguia seu caminho e o sol já não lhe importava, sentia-se em casa debaixo do sol, o sol como uma casa, ou como uma grande estrada repleta de caminhos, e como não há caminhos sem atalhos, W já tinha todo um mapa mental das escuridões possíveis e impossíveis da cidade, observadas diariamente ao longo dos últimos meses de sua vida, em princípio como uma curiosidade e depois como uma necessidade e depois como um jogo viciante e seus olhos não podiam ver uma tampa de bueiro ou uma pedra muito grande ou um hidrante vermelho e abandonado ou uma sombra de um senhor alto e barbudo fazendo sombra sobre a calçada e ele pedia desculpas pois pensava se tratar de um boneco apenas, e a vida ficava divertida assim, pois a vida podia ser uma grande coleção de sombras e de pequenos refúgios onde a luz e os olhos humanos não alcançam afinal, e se sentia bem pensando no mundo como uma grande caixa repleta de pequenas surpresas, que um dia seriam abertas e seriam descobertas, como presentes em caixas verdes e vermelhas e amarrados com fitas azuis ao redor de uma grande árvore de natal.

Além do mais era sempre tentador quando via um canto escuro, e isso era o problema também, ser uma pessoa, e portanto ter coisas que não devem ser vistas ou ouvidas, pois sempre há coisas que devem ser controladas e a única maneira de manter as coisas sob controle é mantendo as coisas em lugares escuros ou fechados ou trancados, como um inconsciente ou uma pequena sala vermelha, ou porta escondida debaixo do assoalho da sala, faz nhec nhec e talvez um dia notem, mas de todo modo qual chão não faz nhec nhec, era um som sofisticado afinal, e também era ousado e ao mesmo tempo era rústico, e ninguém ousaria perguntar algo ao nhec nhec pois nele apenas se pisa, apenas se delicia com os mistérios dos estrados de madeira que nunca tem nada a dizer, nem nunca terão. De todo modo, era tentador, e logo W começou a imaginar os grandes homens e as grandes mulheres, todos eles deviam ter seus tijolos falsos, chefes de departamento, poetas, presidentes, todos com grandes e espaçosos inconscientes, muito maiores do que o espaço reservado para a memória, sem dúvida, se não se pode esconder, deve-se esquecer, melhor uma senha de banco esquecida do que mal-guardada, como quando W deixava seus pequenos quebra-cabeças amontoados em um canto do quarto, e então vinha alguém e provavelmente era seu irmão ou o Neco, e lhe tomavam uma janela ou uma nuvem de céu ou deixavam um buraco em um balão vermelho, e o balão jamais voaria novamente, nem com todos os sopros de todos os ventos, nem se W fechasse os olhos, ou apagasse as luzes, e de todo modo havia dona Bira.

Mas, no mundo de W, encontrar a escuridão era a graça do mundo, assim como depois perdê-la de vista também era a graça do mundo, como quem atira a bola para longe para depois ir buscá-la por conta própria, ainda que sempre tivesse sua própria geografia de sombras na mente por segurança, e logo controlava até mesmo o sol e sabia quando as sombras se projetavam, por quantos metros e em qual direção, de acordo com a hora, sombras avançando a três centímetros por minuto, às vezes mais dependendo do ângulo, cada sombra tendo seus próprios minutos, mais curtos e mais longos, seu próprio tempo em seu próprio universo. E W refletia. No fim das contas, contrário de tudo aquilo seriam os holofotes, seria um mundo sempre ligado na tomada, desligar a noite para a eternidade, e qual seria a graça de um mundo assim? Não, sempre deve haver algo a se revelar, pensava W, sempre algo de novo a ser descoberto, sempre essa sensação de que alguém está escondendo algo de alguém, e se a moral é o preço a se pagar por isso, então.

***

O problema, o problema mesmo do mundo era que já não havia mais escuridão suficiente, a maior parte já está tomada, afinal, são séculos de segredos acumulados – e desvelados –, e por isso todos os buracos. W caminhava pelos buracos da mina, uma de tantas da Golden Iron Co. cheirando a dinamite e a carvão e o pó preto novamente tomando o rosto de W, aquele buraco tem piadas de mau gosto sobre o chefe feitas ao longo de dezessete anos de serviço, aquele tem evidências de treze anos de pães com gergelim tomados – extorquidos – da cantina além do pão único regulamentar, aquele outro mais triangular e pontudo, parecendo uma cabeça deformada de criança, tem valores de contabilidade de despesas com pólvora e outros explosivos arredondados para cima ou para baixo de acordo com as circunstâncias, e segundo W não há nada mais escuro, nada mais longe dos sentidos humanos do que aquilo que está para além de todas as vírgulas do universo. Não, não é pelo ouro ou pelo ferro ou pelo níquel que se escava ou se dinamita, mas pelos buracos que ficam, e o problema todo é que quanto mais se cava e mais se dinamita, mais a luz entra e é preciso cavar mais e mais e dinamitar mais ainda, e alguém lhe pergunta quanto cabe num buraco afinal, e até quando se pode fugir da luz, e W responde não sei, não sei, e volta a dar as suas garfadas, já sem se lembrar do que é que comia afinal de contas até sentir novamente o seu gosto e serem batatas cozidas.

***

O sol estava forte, mais forte do que nunca, e W tinha em uma das mãos um papel com algumas anotações a lápis, e depois a caneta, e também uma câmera fotográfica, e a câmera fotográfica não era igual às outras pois podia enxergar tão longe e também por causa das listras vermelhas que a tornavam tão única. “Tão única neste mundo tão cheio de coisas tão iguais”, W pensou, e por isso pensava também em onde a guardaria, pois tinha uma pá na outra das mãos, e tanta tanta terra nos pés. Mas W caminhava e caminhava, e apenas parou ao chegar em um pequeno terreno baldio em uma rua afastada, e como ninguém olhasse, tomou a pá nas mãos. “Cavar como se dá garfadas em um bom prato de jantar”, W pensou então, e ao seu redor os pássaros marrons cujo nome W nunca lembrava voavam assustados com toda aquela movimentação, e os fios de eletricidade que mal chegavam na região cambaleavam ao vento e se contorciam para que alguma geladeira ou alguma televisão pudesse anunciar a nova forma gel do que antes era um creme, render duas vezes mais, é sempre bom render duas vezes mais, enquanto um grupo de formigas passeava pelo terreno, e chegaria a causar espanto a maneira como eram capazes de distinguir seu próprio formigueiro no meio de todas aquelas centenas e centenas de pequenos montinhos de terra que se espalhavam pelo terreno baldio, cada montinho guardando um pequeno segredo, uma pequena parte de W que W não queria que fosse conhecida, pois W era único e devia continuar sendo único, e quando as moças da mercearia passavam em frente ao terreno baldio a noite, pensavam que alguém havia erguido um cemitério ao lado do bar do seu Quino, e faziam o sinal da cruz antes de seguirem seus próprios caminhos.

***

Neste dia, quando voltava para casa, W encontrou-se com dona Bira. Há quanto tempo não se viam, pensou, e não conformado em deixar sem resposta a própria pergunta, lembrou que não deviam se ver desde os tempos da casa laranja, de correr com Neco pelos milharais escondidos atrás da casa laranja e ouvir de Neco as histórias dele e de Jurema, quando Neco contava todos os detalhes do corpo de Jurema como se estar com Jurema fosse apenas prestar atenção aos detalhes, e W sorria com aquele mundo de Jurema revelado, e imaginava com seria o seu mundo, e como seria a sua Jurema, e depois dona Bira chegando e trazendo os dois para casa, W indo dormir sozinho, pensando em tudo o que poderia caber em uma sacola de pano de feira de domingo e em tudo o que não caberia, e então a janela aberta, correr pela estrada, o sol nascendo ainda de noite e ter de pensar em coisas como café da manhã, e depois em onde fica a fila para trabalhar de estocador, e depois trabalhar oito horas, e depois cinquenta horas, e depois durante a greve, e depois ser convidado para o jantar de fim de ano. O que estaria dona Bira fazendo ali agora, na sua frente, como se fosse um fantasma, W pensa, e quer fazer todos os tipos de perguntas a dona Bira, e quer falar de si mesmo a dona Bira, de todas as coisas que ele conseguiu, com as próprias mãos, e foi apenas então que percebeu que não poderia, pois se falasse sobre as próprias mãos, teria de falar de todos os buracos e de todas as coisas que estavam dentro dos buracos, pois suas mãos estavam sujas de terra e estariam sempre sujas de terra, não importava se lavasse com água, ou com detergente de coco, como fazia dona Bira, quando havia a casa laranja.

E então W pensou que poderia falar sobre outras coisas, falar sobre sua casa, falar sobre o televisor ou sobre Neco, ou falar sobre o jantar, o que comia e o que deixava de comer, sobre as batatas. Mas já não era possível. Não era possível falar quando todas as palavras estavam contaminadas uma pelas outras, e quando falar do sol e do calor e do assalto ao bar do seu Quino no outro dia sempre revelará também algo sobre pacotes e sobre câmeras fotográficas, a realidade muito mais real com as inovadoras lentes alemãs. Há um ponto, ele pensaria depois, em que já não há mais como controlar uma palavra, ou um raio de luz. Ambos tem vida própria, andam por aí como se não tivessem responsabilidades, dizendo e desdizendo as coisas, de modo que o que não se pode matar, deve-se deixar dormir, e dormir.

O fato era que W estava em algum lugar cada vez mais escuro, e ainda que pudesse querer, se tentasse, mesmo dona Bira não poderia acender essas luzes.

Mas dona Bira não tenta acender as luzes. Dona Bira lhe faz perguntas, pergunta por Neco, pergunta sobre seu trabalho, ficara sabendo do trabalho nas minas, de algumas coisas boas, e de algumas não tão boas também, soubera uma briga, mas W não responde, e dona Bira está berrando nos ouvidos de W que deve estar ficando surdo ou talvez louco, e as moças da mercearia passam e olham para W e fazem comentários de tapar a boca com as mãos e seguir caminhando.

***

Naquela noite, W também não disse oi ao chegar em casa, nem boa noite, e a casa permaneceu em silêncio. O encontro com dona Bira o havia perturbado, de alguma maneira. Não tanto pela sua incapacidade em proferir qualquer palavra para dona Bira, isso o chateava, mas podia conviver com isso. O que o incomodava era seu rosto, o rosto que teve durante o silêncio, um rosto que ainda desconhecia, que nunca tinha visto antes, um rosto de maxilares rígidos, ou talvez relaxados de mais, em que a boca em nenhum momento cogita se abrir e se fechar e a língua também não cogita se mover, não cogita deixar aquela jaula em que se havia metido, em que se conforma com sua própria prisão como tantas outras línguas em tantas outras prisões já se conformaram. Por um instante, W sentiu que eventualmente aquele conformismo cederia. Eventualmente, haveria um berro. Mas não havia de ser naquele instante. Naquele instante, precisava de um reflexo. De frente para a televisão, W vê aquilo que é, com todas as suas expressões, suas falhas e suas forças, seus traços de personalidade, suas linhas marcantes que sempre parecem serem capazes de levar alguém a algum lugar. Sim, W tinha todos os motivos para estar satisfeito consigo mesmo, e talvez até abrisse um sorriso enquanto ouvia uma voz ao fundo dizer o quanto era importante sorrir em todos os momentos da vida, e que a vida é sempre um grande sorriso refrescante, sempre um tubo de pasta de dentes nas mãos e os dentes que brilham como deveria estar brilhando a grande mina naquele momento, pois a mina nunca para, e há refletores e se pode ver mesmo de longe, mesmo na mais escura das noites mais escuras, ainda se pode ver alguma coisa. Isso, porém, W apenas imaginava, em sua casa de luzes apagadas e de janelas fechadas, e além da imaginação de W, a imagem da televisão e da moça dos dentes brancos era a única luz que entrava por seus olhos, já tão cansados, e de pálpebras tão pesadas.

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